quinta-feira, março 09, 2006

Dádiva

Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo,
Eu trabalhava no jardim.
Os colibris demoravam-se sobre a flor de madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Endireitando-me, vi o mar azul e velas.

Czeslaw Milosz

5 comentários:

Anónimo disse...

A morte do anonimato, que assim termina, rumo à eventualidade de diálogos mais frutíferos.
contudo, ao contrário de müller, não sou efectivamente um objecto poético.
escrevo prosa.

Aeval disse...

Mostra...

Anónimo disse...

Exortando Müller em Coimbra A

Comprar um jornal, enfim, para matar o tempo; o tempo de espera pelo comboio que me leve daqui para fora. Esta estranha forma de tentar evitar o Tempo e – para que se cumpram os afazeres que os dias trazem, para que não me retenha na letargia de esperar – de chegar sempre mais cedo a qualquer sítio de onde se parte. Logo depois tomar um café, mesmo nesse espaço cinzento da Estação para isso criado. Não saio daqui sem ser de comboio, apesar da vida da cidade, que o ruído me faz denotar, me chamar insistentemente. Esta cidade já nada tem para me dar, depois da minha companheira me ter escrito, da realidade paralela mais próxima, informando-me que, em breve teremos um filho ou filha, que é urgente que nos encontremos juntos ao longo de toda a sua gestação. Amanhã já estarei perto dos dois. Peço um café e sento-me, começando o jornal pela última página, onde o mais céptico dos observadores sociais dá espaço às suas incoerências tão tipicamente humanas.
Desde a noite passada que durmo com a cabeça sobre os ombros. O peso desta não me dá a paciência requerida, para que leia o jornal com a tabula rasa. Tenho a tabula cheia de saliências, de farpas prontas a derramar sangue e de nós muito apertados. Os críticos apunhalam mais uma vez a Arte e vendem-na na CASA DO SENHOR, sem que o filho lá esteja para os chicotear. Espreito o país bucólico pela janela suja e o céu de Monet permite que salte a economia sem me preocupar. Entro pelo verde pontilhista, pensando de raspão no verdete das moedas com que pagarei o café. Pagarei todas as dívidas antes de me deixar conduzir pelos carris. A porta que a eles me conduzia fechou-se, mas abrir-se-á por certo em breve. Espero.
Lucrécio dissolveu-se na Natureza e inspiro-o, misturado com o fumo de cigarro que me preenche as narinas. Controlo a Atmosfera e ninguém me culpa por isso, por enquanto; mas já alguém acendeu a fogueira do meu Auto-de-fé. Serei inútil até para as térmitas, que não gostam de carne assada. O Eixo do Mal cresce e o Eixo do bem não me consegue mobilizar uma réstia de preocupação. As crianças continuarão a explodir e haverão sempre mais crianças, para satisfazer a sede de sangue do Homem. Eu, contribuirei com a minha e não serei louvado, nem subirei ao pedestal por isso. Muitas estátuas preferem aspirar a coca, mas o meu corpo prefere as propriedades do chá. Gosto de chás, sobretudo quando as montanhas se enchem de neve e gelo; todos os elementos tornam as pessoas mais próximas, mais quentes.
A porta para os carris abre-se de novo, não sei movida pelo vento, que faz passar rapidamente as folhas do jornal, ou se por algum fantasma que entra. O mundo, afinal, não acabará amanhã. Uma onda fria de optimismo cria uma aura azul acinzentada em torno do meu corpo cansado. Os olhos revelam alguma vontade de se cerrarem, ainda que por breves instantes, mas são impedidos pela chegada do comboio à linha certa. Passa o batalhão de mulheres para a limpeza superficial. No Médio Oriente – um pouco por todo o lado, nos inúmeros lugares anónimos que o compõem – luta-se pela PAZ. Espero que morram todos em breve, para que ELA seja mais do que uma hipócrita pretensão.
PARA QUE SERVE A PAZ SENÃO PARA DAR PRÉMIOS AOS HIPÓCRITAS SONHADORES QUE A PROCURAM.
Bombeiros tentam aplacar as chamas, mas chegarei antes de elas se extingam. Ardem fronteiras e sucumbem as línguas. A minha, morre lentamente em manchas esparsas que debotam o papel branco.
Abandono o jornal, antes que a Pátria me chame para a Guerra da Paz. O empregado do café esvazia-me os bolsos balouçando-me preso pelos pés em cima do balcão. O seu olhar vazio não encontra musicalidade alguma nas moedas que tiritam pelo chão e prossegue a alienação dentro de momentos, quando colocar o jornal no caixote de lixo. Os poetas reciclados empurram-me até ao comboio. Não lhes chamarei mentirosos, nem os adjectivarei de outra forma, tentando ignorá-los como ignoro o passado.
A paisagem urbana dissolve-se lentamente no reflexo dos vidros limpos da carruagem. Fiquei estático lá atrás a despedir-me de mim. O relógio enorme, desproporcional à fachada do edifício, parou. A Fortuna sobrevoa a cidade pressagiando bons augúrios. Não precisarei esventrar nenhum animal para o perceber. Dormirei, por fim, quando a insensatez parar de me embalar.

Anónimo disse...

coloca um ponto de interrogação na frase das maíusculas e um "chegarei antes que elas se extingam" logo a seguir. Não fiz nenhuma revisão. Sory

Aeval disse...

A Troca da Roda

Estou sentado á beira da estrada,
o condutor muda a roda.
Não me agrada o lugar de onde venho.
Não me agrada o lugar para onde vou.
Por que olho a troca da roda
com impaciência?

Bertold Brecht